quarta-feira, 15 de maio de 2013

# 210















Um filme-testamento não tem necessariamente que corresponder à derradeira obra do realizador, mas deve em princípio resultar numa súmula dos seus interesses e obsessões, e trazer inscrita a ideia de fim (depois de Visconti a utilização repetida do Adagietto de Mahler será sempre prenúncio de morte). Neste sentido, A Rapariga de Parte Nenhuma (La Fille de Nulle Part) pode ser entendido como possível testamento (ou o testamento possível) de Jean-Claude Brisseau, que encena uma despedida no reduto da sua intimidade: filmando-se a si próprio naquela que é também a sua casa. O artesanato fantasmagórico do cinema de Brisseau é também reduzido à expressão despojada a que nos habituou, em cuja transcendência depende só e exclusivamente de acreditarmos no acto de criação com a fé que Brisseau nele deposita.
Não foi somente nos últimos filmes, que fizeram dele presença regular na mesma sala de Lisboa onde é agora exibido A Rapariga de Parte Nenhuma, que o cinema de Brisseau inflectiu para o território do ilusório em fundo naturalista onde o realizador se entretém a especular sobre o sentido da vida e a coabitação no cinema de níveis de realidade mais ou menos fantásticos, paralelos uns em relação aos outros. A simplicidade com que um filme como A Rapariga de Parte Nenhuma se constitui perante o nosso olhar, leva a constatar que consideradas as convenções de que o cinema é feito deixa de fazer sentido recusar o confronto com a liberdade simbólica e discursiva que os filmes de Jean-Claude Brisseau propõem. Os seus filmes projectam o universo interior do realizador, alimentado por livros, pelo cinema, pela imagem e natureza femininas, e a sua principal razão de existir aponta para a necessidade de figurar esses elementos organizados de modo pessoal.















Parece-me um gesto de ousadia e liberdade que A Rapariga de Parte Nenhuma consista na encenação para a morte da personagem interpretada pelo realizador, que convoca para a despedida, e do "nada", uma jovem mulher que poderá ser (o que dá no mesmo porque assim é qualificada pelo Brisseau autor e actor) a reencarnação da sua mulher desaparecida 29 anos antes. Vivendo há muito sozinho num amplo apartamento parisiense recheado de livros, filmes, e imagens do período clássico do cinema, e entregue à escrita de um derradeiro ensaio que teima em não avançar, parece que tudo o que vemos acontecer acontece motivado apenas pelo desejo de que aquelas coisas se manifestem para que os últimos dias de Michel (Jean-Claude Brisseau) decorram de acordo com os seus caprichos e fantasmas. Tudo se justifica que o seja tal como surge diante de nós porque o cinema tem também uma função reparadora ou redentora da nossa experiência de vida.
A Rapariga de Parte Nenhuma é um filme tão mais interessante quanto maior for a disponibilidade para comunicarmos com o imaginário de Brisseau, figurado com elementos concretos e poéticos. Brisseau usou do direito de tornar expressa por antecipação uma última vontade, e realizou este filme de escala coreográfica modesta onde se projecta por inteiro. O modo como escolheu morrer é, a exemplo de outra grande morte relativamente recente no cinema como a de Gran Torino, de Clint Eastwood, o testamento dentro do testamento.

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